quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Sociedade: tolerância, confiança e amizade.














Olgária Matos
Professora de Filosofia Política do Departamento de Filosofia da FFLCH-USP e autora, entre outros, de Os Arcanos do Inteiramente Outro ­ A Escola de Frankfurt, a Melancolia, a Revolução (Brasiliense).
"Todo homem traz consigo a inteira humana condição" (Montaigne).


A filosofia grega antiga concebeu para o Ocidente o ideal cosmopolita de um mundo sem fronteiras. Diógenes (séc. V e IV a.C.) reconhecia nelas convenções ­ separam os homens e os isolam, produzem perseguições e as guerras em nome das quais indivíduos ora se entre matam, ora trocam medalhas: "verdade aquém, falsidade além dos Pirineus", exclamaria Pascal. Experiência do absurdo e da ambição dos homens, o "cidadão do mundo", ao contrário, nasce de um generoso cosmopolitismo apátrida que une os homens ­ seres expostos, vulneráveis, mortais. Também o Humanismo da Renascença endossava a unidade do homem e da natureza, recepcionando-a agora pelo enlaçamento de todos os viventes do Universo pela "alma do mundo". Nesse horizonte, inscreve-se, também, a visão internacionalista que esperava do proletariado mundial a emancipação do gênero humano; herói libertador do atavismo da exploração e da dominação reuniria, por sua ação criadora, poesia e revolução rumo a futuros gloriosos, dissolvendo barreiras entre os homens e entre as nações. Um princípio de reciprocidade entre culturas diversas esperava uma harmonização do diverso e mesmo do oposto. Humanismo renascentista e iluminismo marxista possuíam uma determinada interpretação do homem e da sociedade, a partir da qual procuravam formar o homem para o aperfeiçoamento de si, de seus talentos e habilidades e para a concórdia na cidade.
A partir da Revolução Francesa e com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, seus valores passaram a constituir o ideário mais nobre do humanismo moderno. Sua transmissão se faz, na alternância das gerações, pela educação formadora do caráter na vida privada e da tolerância no espaço público. E-ducere significa "conduzir para fora de", evocando a idéia de itinerário e caminho de um ponto a outro ou de um ao Outro. Tolerare, por sua vez, é levar, suportar e, também, combater. Neste caso, tolerar é esforço para desfazer ortodoxias, revelar a dessemelhança no que parece homogêneo, a fim de que um possa ir ao encontro do Outro. Se a tolerância é algo que se aprende e ensina, seu lugar preferencial é a Escola. Com sua instituição no espaço público, modernidade veio a significar, entre outras coisas, ler pensadores clássicos no original grego ou em latim, porque ricos e pobres ocupavam os mesmos bancos escolares. Em seu Emílio ou da Educação, Rousseau elaborou os princípios que regem um coração virtuoso para o aperfeiçoamento dos costumes e da vida em comum. Progresso só pode ser entendido nos termos segundo os quais há avanços apenas quando ao desenvolvimento econômico corresponde desenvolvimento humano. Hoje, ao contrário, a idéia de progresso faz coincidir conquistas tecnológicas e científicas e "evolução" da humanidade, dissimulando as regressões da sociedade. Estas são consideradas acidentes de percurso do que se convencionou designar por modernidade. Esta, por sua vez, passou a definir-se a partir da hegemonia da ciência e da técnica. Neste sentido, Habermas (em A Ciência e a Técnica como Ideologia, Paris, Gallimard, 1978) refere-se à atitude positivista e também tecnicista que hipostasiam na ciência o equivalente a uma nova fé, sendo considerada a fonte por excelência das soluções para o conjunto dos problemas da humanidade.
Nosso século combinou de maneira singular industrialismo e militarismo, expansão do capitalismo milionário e dissipação do Estado-Nação, racismo e patriotismo em um misto praticamente indiscernível entre Ciência e falsa consciência, entre conformismo científico e o político. Sua gênese encontra-se na racionalidade que constitui o mundo moderno. Neste sentido, Hannah Arendt pôde escrever ter sido Galileu um dos primeiros a realizar um gesto de alienação do homem no mundo, ao transformar a observação a longa distância pela utilização do telescópio, alienação esta que provocou uma separação entre o homem e o universo (cf. A Condição Humana, Forense Universitária). Diferentemente do saber medieval que pretendia preparar o homem para a santidade, e do Renascimento que buscava a geometria cósmica, a ciênica moderna é essencialmente mundana; dela derivam nossos bens úteis e materiais. A Ciência desenvolve-se em um universo que ignora o homem, enquanto o homem vive em um mundo que ignora o universo. Colocando-se acima da humanidade, a ciência constrói um sujeito abstrato, concebendo a natureza por triângulos, retas e plana. O mundo natural passa a ser considerado segundo regularidades quantificáveis, enquanto o homem é incoerente e imprevisível.
A predominância da racionalidade tecno-científica resolve-se, no nível político, em genocídio. A catástrofe não é da ordem da natureza, mas da cultura: "o terremoto de Lisboa", escreve Adorno, "foi suficiente para curar Voltaire da teodicéia leibniziana, e a catástrofe ainda compreensível da natureza foi mínima confrontada com a segunda, social, que escapa à imaginação humana. Porque, nos campos de concentração, não morria mais o indivíduo, mas o exemplar. O genocídio é a integração absoluta que se prepara onde os homens são homogeneizados, onde 'acertam o passo' como se diz em jargão militar" (Negative Dialektik, Suhrkamp, 1980, pp. 326-7). Se o terremoto de 1755 constituiu-se como um acontecimento filosófico crucial , isso não se deveu apenas a seus incontáveis mortos, às ruínas e à destruição da cidade. Foi este o fato a recolocar no centro das investigações metafísicas a questão do Mal na natureza, o que abalava os fundamentos da harmonia preestabelecida no mundo leibniziano e seu "melhor dos mundos possíveis". Frente à catástrofe atual, ela não mais se liga à história da natureza mas à história da cultura, que, por sua vez, pôs a nu a desordem estabelecida tanto por Auschwitz quanto pela razão ocidental, que dissolveu o mais inassimilável do humano no Totalitarismo. Tão abstratos quanto os números são os homens, quando reduzidos a conceito ou sujeito, na indiferença entre o momento lógico e o psicológico no conhecimento, passando a Ciência a ser indiferente a seus objetos de reflexão. A predominância do cânone das ciências exatas faz da sociologia uma ciência sem sociedade. Na razão científica Adorno descobre o que torna possível a exclusão, a perseguição, o preconceito. O mundo construído pela ciência resulta em sua desertificação técnica, e seus procedimentos teóricos e metódicos "não passam de práticas mágicas sublimadas": "o animismo animou o inanimado, o industrialismo retificou a alma" (Dialektik der Aufkärung, Frankfurt, Fischer Verlag, 1980, p. 29). A conversão de todos os existentes à condição de coisas provém ao mesmo tempo do mercado mundial e da ciência planetária: "sem pretender aproximar-me minimamente do significado das causas econômicas da guerra", anota Benjamin, "podemos afirmar que a guerra imperialista, no que tem de mais terrível e fatal, é co-determinada pelo abismo entre os gigantescos meios da técnica, por um lado, e sua exígua iluminação moral, de outro" (cf. W. Benjamin, Documentos de Cultura, Documentos de Barbárie, seleção e apresentação de Willi Bolle, São Paulo, Cultrix/Universidade de São Paulo, 1986, pp. 130-7). A associação entre ciência e guerra dá-se no apogeu do domínio humano da natureza. A humanidade, que renunciou ao milenarismo na história, adotou-o, não obstante, em sua figura tecnocêntrica: "O saber que é poder não conhece limites. Serve aos empreendimentos de qualquer um []; na fábrica ou no campo de batalha está a serviço de todos os fins da economia burguesa. [] A técnica é a essência desse saber. Seu objetivo não são os conceitos ou imagens, nem a felicidade da contemplação, mas o método, a exploração do trabalho dos outros, o capital ("O Conceito de Iluminismo'', in Os Pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1973, p. 98). Assim fetichizado, o método científico transforma o saber em instrumento: "o avião de combate é artilharia eficaz, o telecomando é bússola de maior confiança. O que os homens querem aprender da natureza é como aplicá-la para dominá-la completamente e aos homens []. Poder e conhecimento são sinônimos" (idem, ibidem).
O progresso não realizou por si só a felicidade dos homens. Quanto mais se acumulam métodos e instrumentos, menor é seu sentido. Mundo que determina todas as esferas da vida pelo fator econômico e científico identifica a totalidade dos bens com bens materiais. Ciência e sociedade tecnocrática formam destros escultores, sem que jamais tenham questionado o que é o Belo; hábeis construtores que utilizam materiais de ponta mas que desconhecem as nervuras do conhecimento; substituem a lei pela regra; em seguida a regra pela simples fórmula para o funcionamento lógico do pensamento. Com exímios gestores financeiros não se corre o risco de enfrentar o drama da condição do homem e do sentido da vida.
O nazismo como emblema do Mal radical questiona o otimismo científico pois o confronta às regressões da sociedade. Fanatismos, racismo, etnocentrismo e guerras ocorrem em meio a conquistas da ciência ­ cujo desenvolvimento viabilizaria a passagem, não mais do "socialismo utópico ao socialismo científico", e sim "do socialismo científico ao socialismo utópico". Conhecer a razão científica é compreender o que torna possível a exclusão, a perseguição, o preconceito. A cultura fundada no princípio de identidade tem por aliado o de origem. Havendo sempre algo de primeiro e uno, cada grupo se vê como o verdadeiro herdeiro da origem, tão identitária quanto sedentária. Não se pode, porém, reencontrar em um homem as características gerais que permitam assimilá-lo a outros e dizer: "sou grego, sou alemão". Pensemos nas palavras de Nietzsche quando analisa a palavra Entstehung (origem), com o que o filósofo se dirige à história do século XIX europeu, "pátria de misturas e bastardias, época do homem-mistura": "o europeu não sabe o que ele é, ignora que raças se misturam nele, procura o papel que poderia ter; não tem individualidade []. Os alemães se pretendem a raça pura para dominar a confusão das raças de que são constituídos" (cf. Genealogía de la Moral, Aguilar, 1949). Assim como Nietzsche aponta na cultura grega clássica o princípio apolíneo como negação interna de seu dionisismo, o mesmo se passa nas guerras de seu tempo: "tal como os gregos se enfureciam no sangue grego, assim agora o fazem os europeus no sangue europeu". A hybris da identidade é a da ciência, da política e a do mercado. Neutralidade da Ciência e lei da equivalência só reconhecem o poder como princípio de todas as relações. A associação entre indústria, guerra e ciência já está presente em Bacon que, em seu Novum Organum, vincula a ciência ao desenvolvimento industrial agressivo, sob auspícios expressamente materiais. Sua crítica pode ser encontrada nas palavras de Alain quando trata da Primeira Guerra Mundial: "essa guerra é um erro do pensamento" (cf. Propos sur le Bonheur, Seuil). Se o filósofo assim a considera é por reconhecer nela um "engano" teórico e intelectual, uma vez que na explosão sangrenta e na destruição há um fio condutor dirigindo os homens e as armas: "a guerra não é a manifestação periódica da violência ou eclosão espontânea da agressividade". Ao contrário, implica organização, controle, autocontrole, subordinação e obediência, quer dizer, planejamento, disciplina, "educação" para a guerra. Neste horizonte inscreve-se a experiência da "banalização do Mal, da volatilização da culpa, mundo da equivalência, como o do mercado, da indiferença, como o da ciência. Indiferença, ainda, do cidadão sujeito político ­ com respeito à vida pública ­ de cidadão se metamorfoseia em consumidor, da mesma forma que o espaço público se converte em imagem pública.
De início, espetáculo e especulação possuem raiz comum: "de mesma origem, estão ligados à idéia de conhecimento como operação do olhar e da linguagem. A cultura está impregnada de seu próprio espetáculo, do fazer ver e do deixar-se ver. A questão não se coloca diretamente sobre o espetáculo, mas com o que lhe sucede quando capturado, produzido e enviado pelos meios de comunicação de massa" (Marilena Chauí, "Aula Inaugural", FFLCH-USP, 1992). Já no século passado, Feuerbach escreveu: "sem dúvida nosso tempo prefere a imagem à coisa. A ilusão é sagrada, a verdade profana". Isto significa a entronização do divino em objetos inanimados, a radicalização do fetichismo.
Marx, por sua vez, falava das "sutilezas metafísicas e argúcias teológicas" que se inscrevem nas mercadorias: "toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção apresenta-se como um imenso acúmulo de espetáculos" (Guy Debord, La Sociéle du Spectacle, Buchet-Chastel, 1967) Exposição ao olhar tem, simultaneamente, sentido hipnótico e político, o que se revela no panóptico projetado por Benthan, figura moderna da gestão das massas. O Panóptico de Benthan, concebido para fins carcerários, manifesta intenções claras. Sua estrutura arquitetônica permite aos vigias ver sem, no entanto, serem vistos; quanto aos prisioneiros, são a um só tempo visíveis e incapazes de ver. Há aqui um dispositivo visual que é, melhor dizendo, uma sugestão de visão: o indivíduo se torna dócil, submetendo-se a uma vigilância tanto real quanto virtual. O panóptico é um pequeno teatro, onde cada detento aprende a desempenhar seu papel de prisioneiro para um público hipotético. Segundo Foucault, sua fantasmagoria máxima encontra-se nessa visão globalizante que é a realização última do puro valor de exposição de indivíduos sem defesa. Imagem e exposição total possuem no mundo do fetichismo significados secretos: ao mesmo tempo em que a imagem visível dos governantes deve ser periodicamente trabalhada ­ tudo deve ser mostrado a fim de torná-los próximos ­ já que tudo acompanhamos acerca de sua vida privada ­ ao mesmo tempo, porém, há sempre nisto algo de inacessível, de impalpável e estranho. Em outras palavras, a imagem pública transforma-se em mercadoria e se comporta como as leis do mercado. A sociedade do direito vê-se sorvida pelo mundo anárquico da publicidade e do capital.
O mercado, já se disse, não reconhece direitos. Em termos, pois vale a "lei do mais forte". Semelhante ao descrito por Marx em Formações Econômicas Pré-capitalistas, quando massas inteiras de servos da gleba foram arrancadas de seu modo de vida, crenças e tradições e violentamente lançadas na selva das cidades, vindo a constituir, na Inglaterra, o proletariado moderno, o Estado mínimo em curso, com a privatização sem critérios do que é público e a associação do público ao privado, traz de volta, com a flexibilização das leis trabalhistas, desemprego crescente, miséria material e espiritual. As novas massas, analogamente àquelas do século XIX, denunciam a ficção dos direitos civis. Elas constituem os "novos bárbaros", são o "estrangeiro" de todas as sociedades, o proletariado sem pátria, sem tradição ­ todos os excluídos da modernidade. Direito, numa democracia, observa Lefort, não é aquilo de que se destituem cidadãos, mas o que se exerce em seu benefício, no sentido de sua permanente ampliação àqueles dele desprovidos. Direito significa, também, invenção permanente de novos direitos e, sobretudo, a representação do direito a ter direitos. A destituição de direitos trabalhistas visa a superconcentração e acúmulo do capital. A economia faz-se passar por um ciclo fechado de fenômenos objetivos, quando é, melhor dizendo, política econômica. Nela, os números se comportam como a oratória nos comícios: não são portadores de nenhuma objetividade irrefutável. A economia, através de estatísticas, porcentagens e números, como única maneira de pensar e de ser, é um poderoso redutor do pensamento. O futuro é visto como previsível e controlável e só é evocado como justificativa do que se quer fazer no presente. O discurso oficial dos governantes não reconhece os descontentes da civilização, de tal forma que os conflitos sociais são considerados ilegítimos, seus agentes, incompetentes sociais, de modo a "não haver mais separação entre a posição dos dirigentes e o Poder, nem entre o poder do Estado e a sociedade. A noção de sociedade civil apaga-se" (Lefort, in A Invenção Democrática). O Outro é sempre e só o provocador a ser isolado e, no limite, considerado como desviante ou anti-social.
Neste horizonte, mesmo anacrônicos, os ideais de respeito, tolerância e autonomia do pensamento podem constituir uma reversão de dogmas que geram preconceitos se a estes se contrapuser a prática do diálogo. Noção das mais importantes, este encontra-se intimamente ligado não somente à Filosofia mas ao próprio ato de pensar. Diálogo supõe movimentar-se num campo semântico e conceitual que leva em conta o discernimento,
a distinção, a diferença. O diálogo "é o fazer-se palavra da consciência" (Mario Perniola, Transiti, Bologna Capellli, 1985, p. 140). A assim denominada "mundialização da cultura" pela cultura média midiática produz uma inflação da linguagem, pois todos falam de tudo, acabando-se por confundir tudo. O prefixo dia justaposto ao logos indica, ao mesmo tempo, o que une e o que distingue os contrários.
Para haver diálogo na sociedade, na política e entre culturas é preciso haver encontro ­ o que só ocorre com a condição "de que duas culturas tenham esquecido e abandonado para o esquecimento a própria origem, e isto depende de que cada uma tenha já se tornado dupla com respeito a si mesma" (Mario Perniola, op. cit., p. 145). Ressoam aqui as palavras de Montaigne: "somos duplos em nós mesmos []. Eu agora, eu depois, somos a bem dizer dois" (Essais, II, 16, III, 9, ed. Livre de Poche, 3 vol., 1972). Somos constituídos de matéria tão informe e diversa que "cada peça, cada momento faz seu jogo. E há mais diferença de nós a nós mesmos do que de nós a um outro" (idem, II, 2). Segue-se, em Montaigne, um respeito pela estranheza aparente do Outro, que seria logo adiante compreendida na naturalidade universal deste "eu-país" ampliado que somos, diversificado e tolerante: "tive, por longo período, um homem comigo (um indígena vindo do Brasil a Rouen em 1556) que permaneceu de dez a doze anos (entre nós). O novo mundo foi descoberto em nosso século, no lugar em que Vilegaignon aportou e denominou França Antártica. A descoberta deste país infinito deve ser levada em consideração []. Estes homens estrangeiros e estranhos não conhecem nenhuma forma de contrato" (idem, I, 31). São frugais, diferentes dos europeus, canibais em certas horas, mas de forma alguma desprovidos de bom senso nesse mesmo rito, tendo talento poético em seu folclore. Montaigne hesita em chamá-los bárbaros: "pode-se muito bem tratá-los de bárbaros, de acordo com as leis da razão, mas não em comparação conosco que os ultrapassamos em toda espécie de crueldade" (idem, I, 31). Montaigne critica o domínio colonial dos espanhóis e da Igreja dizendo que os nativos da América nada têm a invejar nos europeus em habilidades e "quanto a sua devoção, observância das leis, bondade, generosidade, sinceridade (franchise), nos foi muito útil não tê-las tanto quanto eles" (III, 6). Os massacres com os quais os colonos dizimaram homens no México e no Peru são matanças, horríveis hostilidades e miseráveis calamidades" (III, 6). Montaigne defende religiões e raças contra todos os excessos das religiões e das raças.
Interrogar a intolerância é, pois, questionar as relações do eu ao outro mas sobretudo de nós a nós mesmos. Ou, nos termos de Freud, este eu que nos é tão íntimo é, também, inquietantemente estranho. Partindo do estudo semântico do adjetivo heimlich (familiar) e de seu antônimo unheimilich (secreto, escondido), Freud indica a coincidência final entre o conhecido e o desconhecido. Na própria palavra inverte-se o mais conhecido em seu contrário, nessa enigmática presença do estranho no mais familiar ­ familiar que, em certas condições, manifesta-se como estranho. É o medo que fixa o estranho fora de nós, revelando naquilo que uma vez foi familiar algo potencialmente "impregnado" do estranho, no caso, o inconsciente (in O Sinistro, São Paulo, Imago). Também nosso eu primitivo, ainda não delimitado pelo mundo externo, projeta para fora de si tudo o que experimenta como perigoso e assustador, constituindo, assim, um duplo ­ sendo estranho e inquietante justamente por conter a destrutividade de nosso próprio eu. Face ao estrangeiro que recusamos e com o qual nos identificamos sem o saber, perdem-se os limites entre o real e o imaginário de forma que o conflito se estabeleça entre a necessidade de identificação com o outro (para que não permaneça desconhecido e ameaçador) e o medo de consegui-la (e perder-se na alteridade).
Orientados pelas considerações freudianas, Horkheimer e Adorno mostram como procedem o preconceituoso racista ou o fanático religioso: fusionando representações verdadeiras acerca de si, atribuem-nas falsamente aos outros. Sua prática é a do "bode-expiatório". O anti-semita inveja secretamente o judeu por qualidades que ele lhe confere
e não suporta a frustração de não as ter. Pratica, por assim dizer, a identificação com um opressor imaginário para tornar-se, ele próprio, "justificadamente" agora, o próprio opressor. Trata-se de um dispositivo que os filósofos denominam "falsa mímesis", adaptação, através da tecnologia e da maquinaria social, a algo tomado como inanimado: "é o medo que favorece a assimilação do diferente ao idêntico ­ a exorcização do perigo através do talismã da identidade" (cf. Dialektik der Aufkärung, op. cit.). Quanto mais fraco o ego, mais forte é sua ancoragem ao idêntico. A mímesis é, neste caso, projeção fóbica e destruidora.
Reconhecer o estrangeiro em nós mesmos nos revela um país desconhecido onde fronteiras e alteridades são, permanentemente, construídas e desfeitas. Não se trata, pois, de "integrar" o estrangeiro e, ainda menos, persegui-lo, mas acolhê-lo neste " inquietante estranhamento" que é tanto o seu quanto o nosso: "somos Cristãos", anotou Montaigne, "a mesmo título que somos perigordianos ou alemães" (idem, II, 12). Trata-se de um cosmopolitismo de tipo novo, transverso a governos, economias e mercados ­ aquele que instala em nós a diferença como condição de nosso estar com os outros. Disto resulta a ampliação de nossa identidade. Se os princípios de identidade e de não contradição determinam um "terceiro excluído", rever este "princípio de Razão" significa apreender um pensamento eclético e plural que recusa a lógica binária das ortodoxias. "Razão mestiça", poderíamos dizer, porque mista e porque joga com descobertas, "com plasticidade e metamorfose, destacando um tercerio termo que, incluído, é o da tolerância heterodoxa" (Maria Helena Varela, O Heterólogo em Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, Espaço e Tempo, 1996, p. 96). Algo semelhante pode ser encontrado, para a compreensão das hibridizações culturais, no conceito de sincretismo, para além da restrição que lhe confere o âmbito religioso. Na origem da palavra "há algo de enigmático e de alusivo []. Dizia-se, de fato, que os cretenses, sempre dispostos a uma luta entre si, se aliavam quando um inimigo externo aparecia. Sincretismo é a união dos cretenses, um conceito defensivo que ultrapassa a fragmentação política interna []. Essa determinação em unir grupos conflituais em busca de alianças entre partes da própria Creta serviu para a posterior migração do conceito: da política à religião" (M. Canevacci, Sincretismos, Exploração das Hibridizações Culturais, São Paulo, Studio Nobel, 1995, p. 15).
O sincretismo pode ser compreendido como uma metodologia. Indica um plano diferente daquele que se engaja em uma verdade essencial, espécie de identidade eleata, garantidora de uma origem. O sincretismo é um outro logos ­ que atesta a crise das aculturações violentas e corsárias. O sincretismo aparenta-se ao oxímoro: uma loucura (oxy) da linguagem que coloca em desordem as fronteiras das palavras para dar novos sentidos às coisas. Oxímoros, sincretismos, heterólogos provêm de lógicas "ilegítimas" e sem "coerência", transitando em assimetrias, contagiando significações consagradas, desviando-se de universalismos intolerantes, indigenizando-se em mutações culturais. Disciplinado numa síntese, o heterogêneo recai na universalidade homogênea, que tudo reconverte à dimensão do mesmo: o sujeito soberano. É preciso manter o passado em sua dispersão, procurando demarcar os ínfimos desvios ou mesmo completas reversões que lhe deram nascimento. O pensamento que presume ter encontrado a verdade é falso justamente por subentender a pacificação entre o pensamento e a coisa. Colocando o Eu em estado de questão, o heterólogos mestiço dá-se plena liberdade de se contradizer, já que a insularidade do Eu não responde "à realidade do real". Nas palavras de Pascal: "Tudo é um, tudo é diverso. Quantas naturezas na do homem" (Pensées, Paris, Garnier, 1964, p. 107). Nesse sentido, o outro não é nosso limite externo, mas o que nos pluraliza e através de quem podemos nos totalizar. Restritos a uma única identidade de origem, diminuímos em ser, em realidade, em humanidade.
Viver é mais do que sobreviver. No século XVI, La Boétie escrevia: "Não pode haver amizade onde há desconfiança, deslealdade, injustiça. Entre os maus, quando se reúnem, é um complô e não companhia. Eles não se entretêm, entretemem-se. Não são amigos mas cúmplices" (Discurso da Servidão Voluntária, São Paulo, Brasiliense, 1982, p. 106). Sociedade que não se funda nos laços da amizade e da fraternidade é, também, sem compaixão. Esta é uma "tristeza mimética" pela qual desejamos o fim do sofrimento de um outro nós mesmos. Não é algo que se descobre na reflexão apenas, mas é criada com a ampliação de nossa identidade e sensibilidade aos pormenores da dor, pois o que os homens têm em comum é serem todos suscetíveis a sofrimentos e decepções. O co-padecimento funda-se em nossa capacidade de identificação no sentido em que "o caminho mais curto de chegarmos a nós mesmos é aquele que dá volta ao mundo". Relativizando nossos costumes, compreender-se-á que se ninguém possui a verdade, todos têm o direito a ser compreendido (Milan Kundera, Contingência, Ironia e Solidariedade, Lisboa, Presença, 1992). Em Heródoto encontramos indicações sobre a exemplaridade de conhecer-se a si mesmo pela mediação do Outro. Quando o historiador narra detalhadamente e com admiração respeitosa os costumes dos egípcios, é a própria Grécia que se faz conhecer: "Entre os egípcios, as mulheres compram e vendem, enquanto os homens ficam em casa a tecer []. Os homens carregam os fardos em suas cabeças, mas as mulheres os carregam nos ombros []. Nenhuma mulher é consagrada ao serviço de divindades, sejam estas masculinas ou femininas. Os homens são os sacerdotes de todas as divindades. Os filhos não são compelidos contra sua vontade a sustentar seus pais, mas as filhas devem fazê-lo mesmo sem o querer" (Histoires, Pléiade, livro II, 35). Conhecer o Outro é conhecer melhor a si mesmo.
Se o Outro é um nós mesmos invertido, podemos dele nos aproximar pelos laços da confiança e da amizade. Horkheimer, por sua vez, escreveu enquanto ainda existia o socialismo histórico, o do Leste Europeu: "Os estudantes fugidos do Leste, nos primeiros meses depois de sua chegada à Alemanha [Federal] são felizes porque há mais liberdade, mas logo se tornam melancólicos porque não há amizade alguma" ("Actualidad de Schopenhauer", in Sociologica, Madrid, Taurus, 1971, p. 194). Um mundo no qual só conta a lei do valor e a lógica do saber a ele associada não é o mundo humano, mas o do capital. Sociedade sem espaço para a amizade e para a fraternidade "não merece o nome de cidade, mas antes o de solidão" (Espinosa, Tratado Político, Pléiade, NRF, v. I).

Fonte: http://www.culturabrasil.pro.br/direitoshumanos2.htm

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